quinta-feira, 22 de maio de 2014

Mulher-cão

(Paula Rego) Mulher-cão / pastel de óleo, 1994, 
Ela acendeu a brasa do fogão anos e anos a fio.
Esfregou o soalho lavou a roupa e os vidros da janela, costurou bainhas descosidas e levou toalhas a cheirar a rosmaninho à senhora do andar de cima.
Foi ao quintal buscar hortelã para a canja e adormeceu ao som das gargalhadas felizes dos meninos hoje já todos engenheiros com a Graça do Senhor.
Agora está atada ao côncavo da terra por atilhos grossos.
Ladra à lua e tudo nela é carne e sangue.
Morde a mão e dança a valsa sobre o chão confuso de algum sonho diluído lá no longe nos botões do maestro do coreto aos domingos e feriados.
Ela é grossa e ladra à lua.
Sente o corpo a crepitar e rasga o coração.
Inesperadamente, entre coágulos de sangue, fala línguas que nunca ninguém lhe ensinou.
Está atada à sangrenta forja das gramáticas lunares e procura uma palavra um nome mesmo que obscuro e difícil de entender.
É uma mulher grossa e no côncavo do corpo fala línguas sem sentido.
Deixou secar os coentros a salsa e a hortelã.
Chama-se cão e ladra à lua.                                                         Vive atada às chamas que a consomem.
José Fanha

Sem comentários: